[Resenha] O Conto da Aia - Margaret Atwood

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Título: O Conto da Aia
Autora: Margaret Atwood
Editora: Rocco
Ano: 2017
N° de páginas: 367

Sinopse:
Escrito em 1985, o romance distópico O conto da aia, da canadense Margaret Atwood, tornou-se um dos livros mais comentados em todo o mundo nos últimos meses, voltando a ocupar posição de destaque nas listas do mais vendidos em diversos países. Além de ter inspirado a série homônima (The Handmaid’s Tale, no original) produzida pelo canal de streaming Hulu, o a ficção futurista de Atwood, ambientada num Estado teocrático e totalitário em que as mulheres são vítimas preferenciais de opressão, tornando-se propriedade do governo, e o fundamentalismo se fortalece como força política, ganhou status de oráculo dos EUA da era Trump.
O Conto da Aia é uma obra que marca a história da literatura com seu alerta de que a sociedade ocidental tem caminhado também para o extremismo religioso e cortando aos poucos os direitos civis e principalmente oprimindo a liberdade feminina e assim trazendo um ar de tensão e medo ao século XXI.

"[...]Como todos os historiadores sabem, o passado é uma enorme escuridão, e repleto de ecos."

Offred é uma aia na República de Gilead. Sua captura se deu poucos anos depois que essa nossa sociedade se revelou no que era antes os Estados Unidos da América. Offred não é seu nome de verdade. Ela não ousa revelar, porque aqui ela é apenas uma serva para algo maior assim como as "Esposas", as "Marthas" e as "Tias". Seus papéis são apenas de instruir e procriar e nada mais.

"Mas não consigo acreditar nisso; a esperança está aflorando em mim, como seiva numa árvore. Sangue numa ferida. Nós fizemos uma abertura."

Nossa narradora foi capturada pelos "Olhos" - unidades de controle da nova sociedade - e está relatando tudo o que viveu e como foi parar ali. Ela nos conta de forma bem sufocante e pessoal, porque sua narração é em primeira pessoa e temos uma visão de toda sua rotina, pensamentos, emoções e arrependimentos, que um dia fora uma mulher com total liberdade de escolha. Vivera dias que podia andar com as roupas que quisesse e não era repreendida ou punida por isso. Outrora vivera em uma época que trabalhava e tinha seu próprio dias e teve dias que tinha família: um marido e uma filha. O primeiro pareceu não se importar com toda sua liberdade seno usurpada pelo Estado e extremistas religiosos e sua filha que podia ter um futuro tão aterrorizante quanto o atual cenário que se encontrava.

Nesta "nova" sociedade as mulheres perderam todos seus direitos e são subjugados não somente pelos homens que fomentaram essa comunidade louca e fundamentada em antigos regimes religiosos e políticos que datam do Velho Testamento e da Idade Média. As mulheres são controladas por outras mulheres. É uma junção diabólica de patriarcado e matriarcado. A política é feita totalmente pelos homens e até a forma que as mulheres se comportaram e assumirão seus papéis nesse novo formato e as mesmas - algumas como as Tias - tem o poder de educar (lavagem cerebral e tortura) as novas "recrutas" para serem boas Marthas - que trabalham com os afazeres da casa - e Aias que são somente receptáculos férteis para procriação.
Offred nos detalha absurdamente as entranhas desse sistema: As Esposas que são as mulheres estéreis que são casadas com homens de alta patente são as "cabeças" na hierarquia feminina e abominam as aias, porque se deitam com seus maridos. As Marthas invejam as aias, porque podem ser "mães" e aias invejam qualquer outra mulher que não precisem abrir as pernas para ser estuprada - ou não seria estupro se elas aceitaram isso? -  pelo seu "dono".

"Não digo fazendo amor, porque não é o que ele está fazendo. Copular também seria inadequado porque teria como pressuposto duas pessoas e apenas uma está envolvida. Tampouco estupro descreve o ato: nada está acontecendo aqui que eu não tenha concordado formalmente em fazer. [...]"

Não espere por uma obra doce e suave. O Conto da Aia é visceralmente doloroso e emocionante, porque nós nos iludimos que aquilo vai mudar e nossa narradora vai mudar tudo isso, porém é um sistema bem arquitetado e venho através de um golpe político e militar - parece com algo que vocês já viram? - que ceifou a vida de todo o corpo legal dos EUA, principalmente o presidente e o parlamento. Eles destruíram o centro do poder e assim garantindo a perda total de direitos dos cidadãos.

O mais ardil e argiloso cenário que a escritora colocou é que só os EUA estão sob esse jugo e não o mundo todo. Há uma passagem no livro que mostra turistas japoneses tirando fotos das aias e sorrindo achando que tudo é um "produto turístico". Você pode pensar que Margaret está sendo muito irônica ou debochada, todavia não. Os EUA fundamentalmente cristão e dificilmente você encontrará quem não acredite no "evangelho da prosperidade" que tanto Trump fala em seus discursos e que assola os norte-americanos e faz as pessoas acreditarem se você é diferente ou pobre, você é um fracassado e por isso tantos ataques as escolas e outros lugares vem sendo normais no país. Não ache que as mulheres no solo "americano" tem tanta liberdade moral quanto os brasileiros acreditam. Tire de sua mente que o tão sonhado sonho americano é livre de qualquer julgamento. Se observamos Brasil e EUA nunca tiveram tanta semelhança quanto agora com Trump e Bolsonaro no poder. O que autora mostrou como "distópico" é apenas a junção de muitos movimentos atuais que boa parte da população ignora, porque pensa que isso é "jogada da oposição" ou ideia de extremistas religiosos do Oriente.

"Ele não se importa com isso, pensei. Não se importa nem um pouco. Talvez até goste disso. Não somos mais um do outro, não mais. Em vez disso, eu sou dele."

A parte do matriarcado aqui não é nova. Se você já leu o Velho Testamento e conhece outras sociedades como a tradicional sociedade indiana, sabe que são as mulheres que instruem outras semelhantes a assumirem seus papéis - que já são definidos pelos homens - como esposas e procriadores e algumas - mais velhas - são as "cabeças" das família, na qual são consultadas para tudo. Nos cinco primeiros livros do Antigo Testamento ( Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) fala-se sobre a criação do Mundo e do ser humano e conhecemos a famosa história de de Raquel que não podia ter filhos e Jacó que acaba tendo que gerar um descendente com sua aia(serva), é essa pequena história que fundamenta a estrutura feminina das mulheres no livro.
O livro é voltado para todos, mas não há dúvida que seu alvo são as mulheres. Você já viu o relacionamento real das mulheres com outras semelhantes? A maioria das mulheres que as outras como "inimigas" e não alguém que possa ser companheira de luta, porque somente alguém igual sabe o que passamos. Só uma mulher sabe o que é menstruação, gravidez, assédio, padrões de beleza. aborto e tantas outras coisas que só mulheres tem o contato. A união é o que mais debatido nesta obra. Por causa de problemas de radiação e climáticos muitos homens ficaram inférteis e a população diminuiu dramaticamente e aias tinham que mudar isso e para isso que houve a junção de matriarcado com o patriarcado, porque nós mulheres somos mais "ovelhas" quando somos educadas por outras mulheres. Offred só percebeu isso quando o golpe já tinha sido dado e possuía ao seu lado duas mulheres que a alertava que coisas estavam erradas: sua mãe e sua melhor amigas. Ambas eram feministas e militavam muito e ela só reclamava que as duas estavam vendo "erros" onde não existiam. Sabe aquela velha história que sempre quem luta é visto como "doido", porque só ele vê algo errado?

"Essa é uma das coisas que eles fazem. Obrigam você a matar, dentro de você."

A resenha pode ter ficado extensa, mas sei que mais de 80% dos meus leitores são mulheres. Não importa se você é cristã ou não. Se é feminista ou não. O que é relevante é: É você que realmente tem tomado as decisões em sua vida? Você tem sido moldada pela falsa moral brasileira? Você vê outras mulheres como possíveis inimigas? Ou melhor as vê como possíveis ladras de seus cônjuges? Você tem TOTAL liberdade de ir e vim? Nunca falaram de sua roupa, maquiagem, personalidade ou peso? Nunca perguntaram: E o namorado? Quando vai casar? E se casou, cadê os filhos?

"[...] para instituir um sistema totalitário  eficaz ou, de fato, qualquer sistema, seja lá qual for, é preciso que se ofereça alguns benefícios  e liberdades, pelo menos para uns poucos privilegiados, em troca daqueles que se retiram."
O Conto da Aia é surpreendentemente verdadeiro e aterrorizante, porque mostra que os sinais estão todos por aí e estamos preocupados é com Direita e Esquerda; com partido X e Y e não com perdas de direitos, tolerância e liberdade.

Nota para a obra:



Comentário(s)
19 Comentário(s)

19 comentários

  1. O conto de Aia foi uma das melhores leituras que eu fiz <3
    Tanto que agora quero ler as outras obras da autora. A forma com que ela desenvolveu essa história, assusta. Deveria ser uma leitura obrigatória =/

    Amei sua resenha
    Beijos
    Sai da Minha Lente

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  2. Olá!
    Vejo muito sobre esse livro e após ter lido Vox fiquei ainda mais curiosa para conhecer O conto da Aia. Sem dúvidas é uma leitura impactante, reflexiva e fala diretamente com o sexo feminino.
    Pretendo ler esse ano.
    Beijos!

    Camila de Moraes

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  3. meu jesus, eu so vi a serie porque nem sabia que tinha o livro antes de assistir
    só fiquei sabendo la pra metade da serie
    enfim, preciso muito ler o livro que com certeza é maravilhosi

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  4. to participando de um projeto de livro viajante com esse livro, nem preciso falar que eu tô super empolgada pra ele chegar aqui em casa né?!
    Adorei tua resenha, me deixou ainda mais animada pra ler!

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  5. Oi!


    Tudo bem?

    Parabéns pela resenha, bem escrita. Ganhei esse livro de passado em 2017 no meu aniversário pela minha melhor amiga que já assistiu a série e pediu o livro emprestado e leu. E toda hora me pergunta se já li! Reconheço todas as reflexões no texto, mas por estar meio que "pressionada" a ler, ainda não li. Esse modelo escravista é bem profundo, mas de uma maneira indireta não deixa de retratar a sociedade contemporânea, né?

    Abraços!

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  6. Tive interesse em ler esse livro desde seu lançamento, mas infelizmente só consegui adquiri-lo este ano e não vejo a hora de devorar essa obra. Acredito que este livro venha nos desperta para um futuro que tem tudo para se tornar real, e tem encaminhado a passos lentos para que isso se ocorra. Porém esse olhar para além do que temos e o que precisamos para juntas conseguir conquistar nossa liberdade.Como você mesma mencionou, esta deveria ser uma leitura que todos deveriam realizar, mas principalmente as mulheres. Bom, sua resenha ficou incrível, e quero mais do que nunca ler essa obra.

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  7. Oi, tudo bem?
    Eu vi a série e fiquei viciada, por isso quero ler o livro desesperadamente agora kkkk Bom, como vi a série já tenho uma noção da história e ela é realmente bem dolorosa e emocionante, eu senti um misto de sentimentos durante a série e imagino que vá acontecer mesmo quando eu ler a obra. Enfim, é uma história surpreendente mesmo e eu acho que todos deveriam conhecer, principalmente as mulheres.

    Beijos :*

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  8. Oi, Joanice!
    Eu estou muito curiosa com esse livro, mas ainda não tive estômago para comprar e ler, sei que vai ser uma leitura difícil, porém interessante. Sei que vou sofrer com a leitura. Mas livros como esse são necessários. Enfim, adorei ver a sua opinião sobre o livro e espero criar coragem logo para lê-lo.

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  9. Olá, tudo bem? Uma das metas desse ano é justamente ler esse livro pois acho mais que necessário eu conhecê-lo, principalmente por ser mulher! Só vejo resenhas elogiosas, e a sua se junta ao coro, o que me anima mais ainda e deixa grandes expectativas para o enredo. Adorei, e achei ótimo o alerta <3
    Beijos,
    http://diariasleituras.blogspot.com.br

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  10. Acho que sua resenha ficou extraordinária, maravilhosa, mas se perdeu um pouco no final 'e estamos preocupados é com Direita e Esquerda', quando você entender a relação da esquerda com o feminismo, então entenderá o que escreveu. fora isso, acredito que estamos vivendo nosso próprio Conto da Aia, infelizmente. Li esse livro e vi a série em seguida, foi forte, cruel e necessário, fui tomada por uma dose cavalar de não desistir da luta, da militância e principalmente, da educação.

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  11. Para cada um esse livro vai falar de uma forma, mas pra mim, como mulher, foi um tapa na cara. Foi ver pessoas iguais a mim em uma situação inevitável e não poder fazer nada. E isso ainda com o plus de ver alguns pontos no enredo que quase soaram como profecias da realidade atual, assustador.

    Debyh
    Eu Insisto

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  12. Olá, tudo bem?
    Adorei sua resenha! Já faz mais de um ano que li esse livro e ainda não consegui escrever sobre ele. Como você disse, é uma leitura dolorosa e confesso que ela acabou mexendo tanto comigo que não consegui encontrar as palavras certas para falar sobre ele.
    Concordo muito com as coisas que você falou. É assustador ver o quanto esse livro está próximo da nossa realidade, principalmente no que se refere à forma como as mulheres se relacionam. É muito triste perceber o quanto a nossa sociedade estimula as mulheres a verem umas as outras como rivais.
    Enfim, adorei ler sua resenha e acho que você trouxe uma excelente dica de leitura.
    Beijos!

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  13. Que resenha mais maravilhosa e questionadora, tão bom quando leio algo que coloca a minha cabecinha pra pensar! Li esse livro assim que ele foi relançado pela Rocco e fiquei surpreendida pela maneira como algo escrito a tanto tempo, tem alguns relances atuais, é muito surreal esse tipo de coisa.

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  14. Esse livro está na minha lista de desejos tem algum tempo, saber o quanto ele pode ser doloroso e emocionante reforça essa minha vontade. Eu confesso que demorei para enxergar essa falsa moral e hoje eu sou do lema NÃO SOU OBRIGADA e isso é libertador, poder usar a roupa que eu quero independente do meu peso, a maquiagem que quero para trabalhar e isso quando eu quiser colocar, isso é libertador. Preciso desse livro.

    Abraços.

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  15. Oi Joanice, sua linda, tudo bem?
    Eu vi o livro sendo indicado como favorito de 2018 em vários canais e blogs. Ele fez muito sucesso com o lançamento da série. Adorei sua resenha, é tão bom quando um livro nos desperta tanta reflexão e questionamentos. Estou louca para ler.
    beijinhos.
    cila.

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  16. Olha, essa foi uma leitura muito dolorosa para mim. Fiquei chocada demais enquanto avançava na história, e senti um nojo sem fim. Aí veio o que estamos vivendo aqui no Brasil, e não consigo não ficar com medo. Nada me tira da cabeça que podemos mesmo ir por um caminho desses, se as pessoas não acordarem logo. Torço todos os dias para estar errada.

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  17. Ola!

    Minha nossa, que resenha mais intensa para um livro tão intenso quanto! Adorei a forma na qual você se expressou na resenha. Esse livro é de fato bem conhecido, e acredito que mesmo diante dos comentários que tenho acompanhado, acredito que esse livro não seja para mim. Preciso de algo divertido e pra cima, algo que me puxe mais para baixo dessa forma não é o melhor pra mim no momento.

    beijos

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  18. Olá Joanice, morro de vontade de ler esse livro *-* Pelos sua resenha e algumas outras que li o livro parece estar bem bacana trazer toda essa reflexão sobre os direitos das mulheres e a luta por ele, além de que o enredo por mais absurdo que seja parece ao mesmo tão real e possivel de acontecer por diversos acontecimentos que vemos hoje na sociedade. Espero ter a chance de lê-lo em breve também.

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  19. Uma das minhas melhores leituras da vida! Essa narrativa assusta por ter tantos elementos que conversam com a nossa realidade, a Atwood soube como discutir a temática feminina de uma maneira única, intensa e muito real. Um livro extremamente necessário e que todos devem ler, principalmente as mulheres. Sua resenha está completíssima, amei!

    Beijos do Wes ^^

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